Fino Fiction

Contos de César Gatto

Centro velho

Os caminhos que formam labirintos de concreto nos transportam aos primórdios de onde tudo se iniciou, e se estendeu, a imensa metrópole, a maior do país, onde o CEP começa em 01.
Ao caminhar pelo centro velho, é possível imaginar por dentro dos edifícios de ornamentos clássicos, seus elevadores com portas sanfonadas, as escadas que formam infinitos caracóis, os homens trabalho, as máquinas de escrever, datilógrafos. O cotidiano de um passado tal qual distante que entra em contraste com as telas modernas, celulares, vidros espelhados que se espalham por outros cantos da cidade.

O centro resiste.

As bancas de engraxates, os postes luminosos a caráter, os bares boêmios, o verde discreto que só é possível de observar se estiver atento em meio ao mar de pedra, a história, o centro histórico.
Os bondes que um dia foram transporte corriqueiro, hoje é memória suspensa em fotografias, quadros, exposições, lembranças dos mais antigos e nostalgia dos mais jovens que hoje sentem sem terem vivido.
O centro velho tem suas peculiaridades e curiosidades. Um sentimento de melancolia ao se deparar com prédios abandonados, degradados, odor de urina pelos lados, seus transeuntes que já não tem onde morar e se aglomeram em uma região que lhes sobrou para lhe chamar de seu.
O centro é multidão e ao mesmo tempo é solidão. Um lugar que vicia, não só nos entorpecentes consumidos à luz do dia nos seus subúrbios entregues à própria sorte e muitas vezes uma região a não se deixar jamais. É ambiguidade em sentidos diversos. Festivo e deprimente, excesso e vazio, beleza e feiura, prisão e liberdade. E cinza como um todo.
Este é o centro velho sob a modesta perspectiva de quem vos escreve, Fino Gatto, no centro histórico de São Paulo.

Uma luz para meu pulmão

Pensei que seria impossível. Pensei que subiria pelas paredes. Pensei que seria o fim da minha companhia em momentos de solidão. Pensei… e pensei… e pensei. E ainda penso. Quem tem ansiedade está aí para pensar, até quando não quer pensar. O que fazer então? Não existe fórmula mágica, mas existe o saber conviver e o saber aliviar. Eu aprendi alguns truques.

Logo quando o galo berra em algum canto do interior, eu me levanto na metrópole sob o berro do despertador. É muito difícil levantar assim de primeira, mas nem tanto de segunda porque logo me lembro da nicotina combinada com um café preto e forte e um pouco de devaneio para completar o ritual. Este fez parte da minha vida por pelo menos quinze anos. É muito prazeroso, convenhamos. Eu gosto de prazer, assim como peixe gosta de água. Mas todo vício tem um preço. O do cigarro é um pouco menos de dez reais, o que é irrisório se compararmos com o estrago que faz no nosso organismo. Tentei parar inúmeras vezes, muitas mesmo. Mas sem sucesso. Até que decidi parar de tentar.

Você consegue perceber o quão forte é esta decisão? Parar de tentar. Parar de tentar. Parar de tentar.
Parar de tentar? Nem pensar!
Quando você para de tentar, você desiste antes mesmo de começar e entra para o clube dos derrotados. Já fui sócio por muitos anos e não quero mais isso para minha vida.

Não foi uma decisão exclusivamente minha, mas com a ajuda de pessoas próximas que torcem por mim, resolvi me dar uma chance. Mais uma vez.
Comecei a fazer academia e um curso no mesmo dia em que larguei o tabaco. Minha solidão agora tem uma companhia saudável.
Não penso mais em voltar a fumar. Sei que é um processo, que é um dia após o outro, que hora ou outra a ansiedade vem com força, mas terei que me controlar e buscar alternativas para saciar a minha vontade e não cair em tentação.
O pulmão agradece.
A saúde agradece.
E principalmente: a vida agradece.

Tudo embaçado

Eu estava cansado. Ainda era terça-feira. E chovia muito.
Dentro do ônibus as janelas se fecham quando chove. Mesmo se lotado. Ninguém quer se molhar, até fazendo muito calor. E tudo fica embaçado. E abafado. E o cheiro é ruim. E o calor é humano. Meu celular estava sem bateria e meu livro tinha esquecido em casa.
Eu observava o povo voltando do trabalho e conseguia sentir o seu cansaço. A energia dentro de um ônibus às 18h é de puro esgotamento. Acredito que o tempo diário gasto no transporte público, por mais que seja menor que o do expediente, é ainda mais cansativo, principalmente para as pessoas que moram na periferia. Ficar pelo menos três horas diárias em pé nas condições acima citadas é realmente pagar um pecado.
Algumas pessoas ainda tentavam tirar um cochilo no trajeto, outras se entretiam no celular. Poucas conversavam. Eu só pensava em chegar em casa antes de escurecer completamente. E não faltava muito. As músicas tocadas pelos fones em meus ouvidos eram imperceptíveis e pareciam ruídos que eram ofuscados pelo caos do horário de pico.
Em certo momento comecei a lamentar esse desperdício de existência. Uma vida baseada em muita labuta e pouco descanso, para, no final das contas, padecer sem recurso e sem saber qual o sentido disso tudo.
Imediatamente resolvi mudar o foco porque poderia ser pior. E comecei a pensar pelo lado positivo: pelo menos eu estava sentado.

Seres invisíveis

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Não estava com tanta pressa assim, mas o ritmo da metrópole fez com que ele se acostumasse a andar a passos largos. Estava voltando para casa em direção ao ponto de ônibus, quando viu uma moça, em situação de rua sentada, implorar aos transeuntes que andavam frenéticos pela calçada da avenida, por uma ajuda, seja ela qual fosse.
Quando ele passou ao seu lado, trocaram olhares. Seus olhos, marejados com lágrimas que haveriam de escorrer, suplicavam por um pingo de misericórdia. Ele, então, passou batido fingindo não perceber o que havia visto de fato. Não era nenhuma novidade para aquela moça invisível aos olhos da sociedade.
Caminhou mais algumas dezenas de metros e, se aproximando do ponto, sua culpa se manifestou: “Eu devia tê-la ajudado, acabei de receber meu salário e mesmo que não tivesse, uma refeição não faria falta para mim assim como, inversamente, faria para ela. Vou ficar na torcida para que algum coração caridoso venha a ajudá-la. Mas e se não aparecer ninguém?”
Enquanto isso seu ônibus se aproxima e ele tem poucos segundos para tomar uma decisão.
O ônibus pára e naquele alvoroço de gente subindo e descendo, ele resolve subir, deixando para trás uma oportunidade única daquela tarde de quinta-feira.
“Por que eu subi? Ah, deixa pra lá. Ora, ela precisa de mim, poderia ser eu no lugar dela. Não devia ter subido. Agora é tarde demais. Não é não. Até eu descer vou me atrasar para chegar em casa, mas estou sem pressa. Mas eu já paguei a passagem. Por que raios estou tão preocupado? Eu nem a conheço. Na próxima vez eu ajudo, mas e se na próxima eu estiver sem dinheiro? O ônibus já partiu e agora já era, não há o que fazer. Não vou me perdoar tão cedo por isso…”
Um conflito de pensamentos e angústias o atormentava, quando num impulso improvável e derradeiro, tomou uma imprevisível atitude, assustando todos que estavam em silêncio no ônibus:
– Ei motorista!!! Vai descer! Vai descer!
O ônibus parou fora do ponto em meio ao trânsito e ele então correu ao seu encontro. Caminhou com pressa e decidido, se esbarrando nos pedestres, dá licença pra cá e para lá, tropeçando, se esquivando, como se fosse socorrer alguém da morte, mas sim da fome daquele dia, e ao chegar lá, ela não estava mais. Virou a cabeça olhando ao redor, com um certo desespero, cogitando perguntar para a multidão se alguém a tinha visto. Em vão.
Voltou então, cabisbaixo para o ponto novamente e assim viu um mendigo dormindo enrolado em seu cobertor. Ao lado havia uma lanchonete, onde ele comprou um lanche e um refrigerante. Cutucou o rapaz que acordou de supetão e ofereceu-lhe o alimento.
No caminho de volta para casa, sentiu de certa forma um alívio, porém ficou preocupado com aquela moça e na esperança de encontrá-la numa próxima ocasião.

Ombro de apoio

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Dependendo de onde eu esteja, vou até o final para conseguir o que para tantos é o mais precioso: o assento na janela. E quando digo final, é no sentido literal: o ponto final de ônibus. Lá estava eu, caminhando dois quilômetros a pé para disputar o famigerado assento. Chegando lá, outros tantos já formavam duas filas indianas, afinal, ninguém quer ir em pé. Eu fui o primeiro da terceira fila, estava sem pressa e ainda pude contemplar o sol se pondo, fumando meu passatempo.
Esperei cerca de 40 minutos e logo o tão requisitado chegou, abrindo as portas, e eu pude ver em meus pensamentos, um tapete vermelho se estendendo a minha frente e uma voz sussurrando em meus ouvidos: Você é o primeiro da fila, fique à vontade e escolha seu assento. Um devaneio simples que fez meu dia ter valido a pena.
A maioria das pessoas não tem essa sorte de estar a dois km do ponto final e tem que encarar o ônibus do jeito que fosse, do jeito que desse.
Uma dessas pessoas ainda teve a sorte de ter um assento livre ao meu lado. Um rapaz visivelmente exausto, como se tivesse acabado de disputar uma briga com o leão do dia a dia.
Ele não resiste e dorme ali mesmo, largado, com sua cabeça rodando para cá e para lá, conforme o gingado do ônibus. Eis que o balanço trouxe seu crânio para de encontro com meu ombro. À princípio, fiquei incomodado e até pensei em acordá-lo e trocar de lugar para que o mesmo pudesse se apoiar com a cabeça na janela. Mas não o fiz. Apenas dei um tranco que fez ele voltar a sua condição anterior. Mas não teve jeito, passava alguns instantes e ele voltava a se deitar em mim. Eu sabia que ele não estava me provocando, estava apenas cansado. Eu mesmo já me vi em situação semelhante, principalmente nas manhãs.
Fiz o que achei que deveria ser feito, cedi meu ombro de apoio durante toda a viagem, até que tive que descer e, com uma certa dificuldade, o acordei. Ele acordou meio que de súbito e ficou desesperado em descer, nem me agradeceu, mas foi correndo descer do ônibus porque provavelmente perdeu seu ponto.

Devaneios de um fumante

cigarro

Não importa onde ou quando, uma pausa para o cigarro é uma necessidade. Um vício que vem desde os primórdios de uma vida breve. Um alimento tóxico, porém saboroso, que chega ao pulmão que pede trégua, que implora por aquele ar puro do interior, em vão.
Tomou seu banho e foi direto na varanda tragar seu passatempo. “Preciso ligar para os meus amigos, faz anos que não os vejo. Mentira. Os vi hoje mesmo nas redes sociais. Eles parecem estarem bem. Não foram eles e nem eu que sumi, a vida que passou e os levou, cada um pro seu destino, cada um com seu motivo. Mas uma curtida pra cá, outra acolá, dá uma falsa sensação de que estão todos próximos. Tem os colegas do trabalho também, mas não é a mesma coisa. Eu não os escolhi. Desconfio de quase todos. Há, inclusive,  aquela moça que conheci pela internet. A gente ficou duas vezes e agora fico naquele jogo de atenção: será que mando mensagem agora ou depois? Esse jogo de expectativas bagunça minha cabeça. Talvez se eu mandar depois não dê a entender que estou obcecado, nem estou, mas e se ela pensar que estou? Isso é um problema? Banal, diga-se de passagem. Quero voltar a fazer terapia e contar meus podres para alguém de confiança que não seja eu. Tenho certeza que pelo menos dois terapeutas com quem passei debochavam de minhas inseguranças em mesas de bar. Não os julgo, talvez eu fizesse o mesmo. Mas a última tenho certeza que não, ela era um doce, muito especial. Tenho tantos sonhos a serem realizados, mas se esfarelam pelos dedos quando o assunto é dar o mais difícil passo, o primeiro. Não fosse o amanhã, que dia agitado hoje seria. Logo estarei velho e com certeza me arrependerei, mas o que eu posso fazer hoje? Lamentar? Correr atrás? Estar aqui sentado vendo a fumaça dançar no céu sem vento é tão prazeroso. Lá se foi mais uma geração de minha família. O tempo voa é pleonasmo. Já estou na pré-derradeira geração. Vários fios brancos no cabelo já dão as caras, percebi algumas discretas rugas também, principalmente quando sorrio. Mas e lá na frente? Quem cuidará de mim? Não pretendo ter filhos e não quero ser abandonado num asilo à própria sorte. Pensar no futuro me deixa angustiado. Quer saber? Vou acender mais um cigarro pra viver hoje e morrer amanhã.”

Por aí…

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Pegou a carteira e o mp3 e saiu de casa por aí, sem destino. O celular deixou para trás. Deu sinal para o primeiro ônibus que passou, que parou e ele entrou. Não havia lugar para sentar, então ficou em pé enquanto escutava Raul e observava o motorista cumprimentar o outro que vinha no sentido contrário.
Todos estavam vidrados olhando para seus respectivos celulares, menos o motorista. E ele, claro.
Ninguém estava triste. Nem feliz. Eram apenas mundos particulares se deslocando para um destino, menos ele porque ele não tinha um destino. Ou tinha? Afinal, ele vai parar em algum lugar e esse será seu destino. Então, digamos que ele não tinha um destino premeditado, mas tinha um destino que ele não sabia qual seria.
Observava atentamente as casas e os comércios se aproximando e desaparecendo conforme o andar do ônibus. Viu um rapaz distraído passeando com seu cão e um outro que viera brincar ao seu encontro. Havia um ser humano deitado na calçada, mas o que chamou a atenção das pessoas, foi um carro conversível que passou do lado.
Queria saber qual o sentido de uma vida sem sentido. “Será que quando batermos as botas, saberemos?” – indagou a si mesmo esperando uma resposta que não veio.
Deu sinal porque resolveu descer. Caminhou até uma praça e avistou um banco vazio. Deitou-se nele. Estava na sombra, mas conseguia ver passar os raios de sol por entre as frestas dos galhos e folhas das árvores. Escutava uma música melancólica e definiu esse contexto com o nome de felicidade. “Mas felicidade é passageira. Como tudo na vida. A vida é apenas um piscar de olhos perante a imensidão do tempo. Tempo esse que vem desde os  primórdios, do pré-cambriano ao cenozóico, alguma coisa assim. E ainda tem as galáxias, as estrelas, o universo. Deus que criou tudo isso? É muita informação para um cérebro só, apesar de ter milhões de neurônios. Mas mesmo assim, já esqueci o que pensei. E vivo esquecendo, a gente absorve e logo esquece com o tempo, tempo esse que vem desde os primórdios…” – refletiu.
Depois de uma hora de uma discussão silenciosa entre ele e ele mesmo, voltou para a casa sem saber qual o sentido da vida. Se é que tem sentido.

Devaneios de um banho

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Entrou no chuveiro e fechou o box de vidro. Girou o registro e esperou alguns segundos até a água esquentar. Entrou aos poucos, colocando as mãos primeiro, depois, o corpo inteiro. A água estava morna, do jeito que ele queria. Estendeu sua mão até alcançar aquele produto de passar no cabelo.
“Bem que os fabricantes deveriam escrever ‘Shampoo’ com uma letra mais graúda, mal consigo enxergar esse trem. ‘Mente aberta não entra mosca.’ Nossa! Que ideia legal! Preciso anotar no meu caderno de anotações para não esquecer. Mas aquele cara é muito folgado, eu emprestei meu livro e ele nem me devolveu. Eu preciso avisá-lo, mas que mania que eu tenho de deixar tudo pra depois. Se bobear, tem um pedaço de pizza na geladeira. Meu Deus, faça com que aquele pedaço ainda esteja lá! Eu devia ter respondido de tal maneira naquele dia, as boas ideias só chegam atrasadas, bem depois que já passou, agora não tem mais jeito, fazer o que né? Falou, tá falado. Hunf. Será que se eu conseguir prender minha respiração por uns dez minutos eu morro? Será que ela pensa em mim assim como eu penso nela? A expectativa diz que sim, porém a frustração alerta que não. Que sorte que o busão tava vazio hoje, deu pra ler algumas páginas daquela história. Como será que é o final? Tô torcendo para o protagonista morrer e o autor conseguir derramar lágrimas em meus olhos. Será que Deus existe? O que eu estou fazendo aqui? Hã? Hein? Por que meu chefe falou comigo daquele jeito hoje? Eu gosto dele, mas… sei lá, no happy hour ele é legal. Caraca! O universo é grande demais, acho que é infinito, assim como a mente humana. Deve ser maior legal ser astronauta. Já pensou estar na lua e enxergar a Terra lá de cima? Ao vivo deve ser bem mais legal do que ver imagens e vídeos pela internet.
A plateia está agitada, pulando e acompanhando meus movimentos, eu tô no palco, eu grito no microfone, eles acompanham. Todos estão eufóricos, fazendo ‘bate-cabeça’, despreocupados com os problemas e vivendo o presente…”

Com a mão fechada, ele a aproximava até sua boca e cantava freneticamente como se não houvesse amanhã, até perceber que o banho já estava no fim. Desligou o chuveiro, se secou com a toalha, vestiu-se e foi direto comer aquele bendito pedaço de pizza. Só que ao abrir a geladeira, a pizza já tinha sido devorada por alguém que também morava naquela residência. Xingou alto por dentro e por fora e foi fumar um cigarro para desestressar.
Eis que o segundo round de devaneios veio à tona, também conhecido como ‘Devaneios de um fumante’.

Um tímido na balada

balada

Enquanto tomava banho, pensava no que fazer de diferente desta vez. Na última, faltou coragem para ele ao tentar flertar com uma garota. Uma balada é um lugar propício para talvez encontrar seu par perfeito, mas para uma pessoa tímida, isso é tão difícil quanto apresentar um trabalho para a plateia de uma faculdade.
Saiu do chuveiro e enquanto se arrumava, ligou para encontrar com seu amigo naquela esquina de sempre no horário X.
Então se encontraram e foram conversando durante o caminho até encontrarem aquela única vaga que havia para estacionar.
Desceram do carro e mostraram seus documentos de identidade para o segurança da balada. Entraram.
O ambiente estava escuro, cheio e apertado de tal maneira que tinha que pedir licença para passar. Havia luzes coloridas que iluminavam discretamente o ambiente e enfeitavam toda a parede da balada, que mais se parecia a uma casa.
Encontraram um espaço vazio na pista e começaram a dançar no ritmo daquela música que fazia tremer o chão e no embalo da euforia do dançar das pessoas felizes. O calor humano era intenso.
Passaram-se alguns minutos e seu amigo se dispersou sem dar satisfação.
Pensou que seria difícil tentar conversar com alguma garota naquela pista barulhenta, então resolveu ir comprar uma cerveja.
No caminho até o balcão, naquele canto próximo ao banheiro, viu seu amigo aos beijos e amassos com uma garota como se não houvesse amanhã. Ficou feliz por ele e na torcida daquela garota ter alguma amiga solteira para lhe apresentar. Comprou, então,  uma cerveja e foi fumar um cigarro na área de fumantes.
O espaço era grande e tinha uma quantidade razoável de pessoas conversando. Acendeu seu cigarro e ficou observando o movimento, enquanto dava uns goles na cerveja trincando de tão gelada.
Repentinamente apareceu uma garota andando próximo a ele e ficou parada encostada na parede.
“Parece estar sozinha”, pensou. Então, ficou olhando para ela e pensando em alguma estratégia para puxar conversa, porém, ele gaguejava até no pensamento.
Passaram-se alguns instantes e seus olhares se cruzaram e num curto espaço de tempo, ela soltou um tímido sorriso para ele.
Seu coração começou a bater cada vez mais forte enquanto sua mente ficava em uma eterna indecisão: “vou ou não vou?”
Eis que a indecisão virou decisão e ele foi.
Deu seu primeiro passo enquanto o mundo ao redor ficava em silêncio absoluto e só existia ela pela frente em um caminho que se abriu para somente ele passar. Sentia um avalanche de emoções e pensamentos, tudo misturado dentro de um liquidificador ligado. E a adrenalina do momento aumentava proporcionalmente ao tempo que diminuía a cada passo que ele dava.
Então eles ficaram frente a frente e o mundo congelou até ele soltar a primeira palavra que estava engasgada:
– Oi.

Paranoia

baseado

Revirou a geladeira e os armários da cozinha e nada havia. Olhou para a carteira e havia alguns trocados, o suficiente para uma refeição. Estava há um bom tempo sem se alimentar e precisava preencher este vazio, embora sem estar com muita fome. Biotônico era coisa do passado, então preferiu optar por uma solução atual e natural para abrir o apetite.
Encaminhou-se até seu quarto e nos fundos daquela gaveta, retirou um estojo que envolvia alguns apetrechos e o principal: a erva proibida.
Dichavou e despejou o “orégano” na seda, nivelou, enrolou, passou a língua e concluiu com todo cuidado para não desperdiçar. O baseado estava pronto, assim como ele, e então se encaminhou até seu destino: aquela movimentada praça de alimentação.
Optou por um caminho um tanto deserto sob o céu já escurecendo. Olhou para os lados e, sem hesitar, acendeu seu cigarro de artista. O cheiro parecia não incomodar os poucos pedestres que por lá circulavam.
Logo à frente, avistou uma viatura circulando lentamente pela rua vindo em sua direção. Sagaz, escondeu o baseado entre seus dedos enquanto os policiais o encaravam com sangue nos olhos. Ele olhou discretamente de canto para eles e continuou caminhando enquanto a viatura se perdia de vista ao virar na esquina de trás. Fumou, então, até a última ponta e a dispensou na calçada suja.
O efeito veio à tona um pouco antes de chegar na praça de alimentação. Sentia seu cérebro latejando, fruto de uma massagem agradável proveniente de um aspirar, segurar e expelir a fumaça de uma planta, cientificamente conhecida como cannabis.
A praça de alimentação estava quase cheia de pessoas sentadas e outras circulando e de repente ele sentiu um olhar vindo de todos os rostos ao mesmo tempo, como se tivessem o julgando por ter cometido alguma barbárie, como se ele fosse o réu e a multidão, o juiz. Os olhares o espremiam para dentro de um beco sem saída envolvido numa sensação de ataque de pânico em meio ao barulho ensurdecedor do conversar das pessoas que por lá presenciavam sem saberem o que estava acontecendo.
Ele sabia que tudo isso era fruto de sua imaginação sob efeito de um entorpecente, pois passara por isso outras vezes que havia fumado.
Havia uma cadeira vazia, então ele se sentou e esperou se acalmar.
Passado alguns minutos, ele se acalmou, se levantou, foi até a lanchonete e fez o seu pedido:
– Me vê uma coxinha e uma coca!